A hipótese de que distúrbios de coagulação sanguínea estariam na base dos sintomas mais graves da doença COVID-19 – entre eles, insuficiência respiratória e fibrose pulmonar – foi cogitada por pesquisadores da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo (USP) em meados de abril. Em menos de um mês, o tema ganhou destaque em reportagens publicadas nos sites da Science e da Nature, duas das mais importantes publicações científicas internacionais.
Entre as primeiras pessoas a perceber o “caráter trombótico” da doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) está a médica Elnara Negri, que atua no Hospital das Clínicas da FM-USP e também no Hospital Sírio-Libanês.
“Foi por volta do dia 25 de março. Tratávamos uma paciente cuja função respiratória piorava rapidamente e, quando ela foi entubada, percebi que seu pulmão era fácil de ventilar. Não estava enrijecido, como seria esperado em alguém com síndrome do desconforto respiratório agudo. Logo depois notei que essa pessoa apresentava isquemia em um dos dedos do pé”, explica Elnara Negri à Agência Fapesp.
Obstrução
O sintoma, que tem sido chamado de COVID toes (dedos do pé de COVID), é causado pela obstrução de pequenos vasos que irrigam os dedos dos pés. Negri já havia observado fenômeno semelhante, muitos anos atrás, em pacientes submetidos a aparelhos de circulação extracorpórea durante cirurgia cardíaca.
“O equipamento que se usava antigamente bombeava oxigênio no sangue e induzia a formação de coágulos no interior dos vasos. Eu já tinha visto aquele quadro e sabia como tratar”, afirma.
A médica prescreveu heparina, um dos medicamentos anticoagulantes mais usados no mundo, e em menos de 18 horas o nível de oxigenação da paciente melhorou. O dedinho do pé, antes vermelho, ficou cor-de-rosa. O efeito se repetiu em outros casos atendidos no Sírio-Libanês.
“Após esse dia, tratamos cerca de 80 pacientes com COVID-19 e, até agora, ninguém morreu. Atualmente, quatro estão na UTI [Unidade de Terapia Intensiva] e os demais ou estão na enfermaria ou já foram para casa”, diz.
Enquanto a maioria dos estudos indica que casos graves de COVID-19 necessitam, em média, de 28 dias de ventilação mecânica para recuperação, os pacientes tratados com heparina geralmente melhoram entre o 10º e o 14º dia de tratamento intensivo.
A experiência clínica com as primeiras 27 pessoas submetidas ao protocolo desenvolvido no Sírio-Libanês foi descrita em artigo disponível na plataforma medRxiv, ainda em versão pré-print (sem revisão por pares).
Evidências patológicas
Logo após a primeira experiência bem-sucedida com heparina, Negri compartilhou o achado com seus colegas do Departamento de Patologia da FM-USP Marisa Dolhnikoff e Paulo Saldiva, que estão coordenando as autópsias de pessoas que morreram em decorrência da COVID-19 no Hospital das Clínicas.
Por meio de procedimentos minimamente invasivos, desenvolvidos durante um projeto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), os patologistas haviam observado a existência de focos hemorrágicos na rede de pequenos vasos do pulmão, associados à presença de microtrombos – pequenos coágulos formados pela agregação de plaquetas.
Juntos, os pesquisadores da FM-USP redigiram o primeiro artigo da literatura científica que descreveu “evidências patológicas de fenômenos trombóticos pulmonares em COVID-19 grave”. O trabalho, revisado por pares e aceito para publicação no Journal of Thrombosis and Haemostasis, tem potencial para revolucionar o tratamento da doença.
Com informações do Governo do Estado de SP
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